terça-feira, 27 de março de 2012

Nessas estreitas passarelas da noite



Uma vez ou outra ainda nos lembramos...
E como na infância – ainda não tão distante – nos permitimos olhar o céu.
No entanto, ela – a lua – não está mais lá.
Ou talvez esteja, mas agora já não nos encanta mais.
Já não nos toca, já não nos escuta,
já não nos diz nada...
A lua terá mesmo ido embora ou ficado surda,
ou será que nós é que perdemos a voz?
Talvez tenhamos crescido
e as pessoas crescidas na maioria das vezes esquecem mesmo o encanto,
– descem das pontas dos pelos do coelho –
e nada mais é novo e quase nada é belo...
restando apenas trapos e cinzas – poucas cinzas.
Talvez então seja isso...
Nós perdemos a voz, esquecemos o encanto,
agarramo-nos ao pranto e seguimos
de mãos dadas
por essas tais “estreitas passarelas da noite”.

"Uilton david Santos"

quinta-feira, 15 de março de 2012

Num recanto do Éden



Havia deixado de lado todas as regras e tudo o que eu acreditava ser o certo ou errado da consciência que me chamava incansavelmente às obrigações do dia. Partes de mim acreditavam piamente ser ali o início de minha perdição, no entanto, a outra parte acreditava que aquela decisão seria sim, o início do livre arbítrio.
Londres, dezembro de 1998.
Matthew me esperava na estação King’s Cross ao cair da noite. Eu levava apenas uma pequena mala com algumas roupas. Na verdade, não queria nada que me lembrasse a antiga vida. Somente Matthew e eu - fugitiva de um infeliz casamento por conveniências.
Ao entrar no taxi, sentia no estômago a sensação de borboletas que senti no colegial, quando beijada por Michael, o capitão do time de futebol da escola e o grande amor da minha adolescência. Desde então, não conseguia imaginar um outro momento da vida em que eu tivesse sido realmente feliz, até encontrar o Matthew ou Matt, como eu o chamava carinhosamente em nossos encontros ilícitos. Ele havia ressuscitado em mim a parte que havia morrido ao lado de John, o homem com quem até então eu tinha vivido quinze anos da minha vida como quem vive somente o inverno, contemplando de longe as demais estações do ano.
Ao chegar à estação, avistei Matt e o sorriso que me encantou desde o primeiro momento há alguns meses antes, na manhã em que fui cumprimentada por aquele jovem italiano estudante de filosofia. Sem tirar os olhos de seus lindos olhos castanhos, coloquei a mala no chão e nos beijamos na frente de todas as pessoas e eu já não me preocupava em ser vista com um homem bem mais jovem que eu. Estar com Matthew era como adentrar os portões do Éden e pedir que o tempo deixasse de existir para nunca mais ser obrigada a sair do paraíso e, aquela vez não era diferente, era como ter esperado vidas inteiras para então poder respirar novamente. Era como viver um poema de Salvatore Quasimodo.
Cada um está só sobre o coração da terra,
Trespassado por um raio de sol:
E de repente é noite.”
Era como se cada segundo fosse para sempre o último. Esperava que os meninos encontrassem a carta de despedida antes do John, esperava que me perdoassem algum dia, mas esperava também partir e não ter que voltar mais. Esperava conhecer a bela Gênova – cidade natal de Matthew – e ver o por do sol da ilha na qual ele dissera ter vivido os melhores dias de sua infância...
Nossos olhos se caçavam. Havia entre nossos corpos uma gravidade inexplicável, uma força imensurável que não nos permitia a distância sem que nossos corações gritassem à espera do próximo toque, o próximo beijo... Queríamos um ao outro como quem compreende e teme a brevidade da vida.
Entramos no trem de mãos dadas, olhar adiante, como se o mundo que ficara para trás jamais houvesse pertencido a nós. Matt sentia o quanto tudo aquilo estava sendo difícil para mim, mas ao sentarmo-nos ao lado um do outro no trem, abraçou-me recostando minha cabeça em seu peito. Senti seu calor e sua respiração e como sempre, era o que bastava para me aquietar o espírito. Nunca fui espiritualista, mas se existiram mesmo outras vidas antes dessa, tenho certeza de que amei o Matthew em todas elas.
O trem começava a se mover quando de repente vi um homem de sobretudo escuro e olhar penetrante entrar pela porta logo à nossa frente. Achei-o estranho, mas não o conhecia, então não dei muita importância ao último passageiro a embarcar. Sentou à nossa frente e Matthew o cumprimentou sorrindo, como é típico dos homens italianos. O homem estranho olhou para nós como se nos observasse, apertou os olhos e num discreto sorriso tirou do sobretudo um revólver. Matthew colocou-se à minha frente como se quisesse me proteger do inevitável. A imagem de John me veio imediatamente à cabeça. Um homem de negócios poderoso é deixado pela mulher que foge com um jovem italiano apaixonado. Fui ingênua demais ao acreditar na passividade de John diante de tal situação. Mas não se tratava só da minha ingenuidade, tratava-se do barulho discreto do silenciador usado pelos assassinos profissionais, tratava-se de como tudo em volta parecia em câmera lenta, de como ninguém percebera a minha desgraça, tratava-se de Matthew sangrando e eu paralisada vendo o homem que eu amava partindo, mas partindo sem mim. Nossa fuga tão planejada não iria acontecer mais. Matthew iria sozinho. Vi o sonho de Gênova e o vislumbre de felicidade afastar-se, dando lugar à dor que jamais seria remediada. Matthew estava sangrando em meus braços e eu só conseguia pedir a ele que não me deixasse. Lágrimas e sangue, cinzas e vinhos... O brilho nos olhos do meu amor se apagando.
Io ti voglio bene L'amore mio. – Matthew repetia as palavras que ouvi todos os dias, durante os meses do nosso romance.
– Eu te amo mais. – Consegui dizer em voz trêmula.
Perdonami. Perdonami amore. – Matthew então fechou os olhos e me deixou.
Quietinho, como quem aceitasse sem objeção alguma a sentença do universo infinito, o meu Matthew partiu. Se foi como um sonho não vivido. Se foi levando consigo a parte de mim que ansiava a vida. Cheguei à estação, mas somente Matthew partiu.
Obrigada a voltar para casa, levei comigo apenas uma lembrança: o sorriso de Matthew que sangrando em meus braços ainda dizia em voz branda que me amava.
Entrei pela porta da frente e John estava na poltrona da segunda sala como sempre estivera, sem se mover, sem dizer uma só palavra. Apenas ele e seu copo de uísque e gelo.
Na manhã seguinte na mesa do café, John beijou-me o rosto como era de costume todas as manhãs. Meus filhos nunca souberam de nada, nem saberão. Nossas vidas seguiram como se nada tivesse acontecido. – Se é que se pode dizer que tenho vida – O meu amor ilícito ficou para sempre no passado. Um passado que hoje – quase treze anos depois – procuro não lembrar. Um passado do qual fujo incessantemente, esquivando-me da lembrança de que um dia estive num dos poucos recantos do Éden que Deus havia deixado na terra.

Elisabeth Petrova
São Francisco, outubro de 2011

"Uilton David Santos"